quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A curva da vida da Joana



A psoríase deu-te cabo da pele logo cedo.
Sonhavas ser um xuxu  leite de colónia!
‘Sonhar com o melhor’ dizias, só assim vale a pena sonhar.
No Verão mantinhas as mangas compridas e as golas subidas.
‘Não tenho calor!’
Escondias as crostas para não terem pena de ti, para não te perguntarem ‘o que é isso coitada?’.
Espalhavas urtigas e banha de porco na pele mas ela continuava inflamada, receita que encontraste num blog brasileiro.
Às vezes esquecias de dar importância à pele que vestias, ‘sou mais que isso’, pensavas amuada, mas no fundo sentias raiva por os outros acharem a tua condição preocupante, 'asco'.
Queixavam-se que eras distraída, ‘tola’, mas o que fazias era meditar muito na vida.
Pensavas com frequência no amor!
Principalmente no incondicional! ‘Será que existe?’
Observavas com atenção os outros, em concreto os teus primos, mais de vinte rapazes e raparigas que pairavam ali na zona de Peniche, fértil em canzanas.
Permanecias sorridente mas distante daquele mundo aparentemente divertido.
Tinhas psoríase e os rapazes pensavam que se ‘pegava’.
Desculpavas a tua tristeza com o facto de terem todos planos especiais na escola, porque eram especiais na sua estupidez.
Cedo percebeste que o amor incondicional nunca encontrava resposta, quem o recebia não o queria, quem o tinha queria despachá-lo.
‘Seria eu capaz de o recusar? Talvez!’, consideravas tudo o que era simples desinteressante, como a tua família e os vizinhos.
O querer sincero tem um bruto entranhado no coração. Concluíste isto ao observar os cães e gatos vadios que circulavam junto ao bairro dos pescadores, mostravam feridas expostas mas pareciam satisfeitos.
O querer invejoso quer contagiar, não procura lealdade, procura espelhar-se onde pode.
 ‘Quem não recebe que baste em pequeno, rouba mais tarde para si, absorve o outro numa paz aparente. Este tomar como seu requer malícia, este querer habita em corpos com almas que são um antro’.
Achavas que este querer era predominante, um puxar de lustro ao ego inseguro.

O incondicional, o sincero e o invejoso, era o que havia por ali.
Nada de romance ou amor platónico, isso é para quem não pesca para comer de domingo a domingo.

Tinhas uma arma poderosa, que herdaste dos antepassados Gregos, tinhas pressentimentos -  uma avaria inata na máquina do bom destino e da felicidade.
Pressentias que nada tinhas com o amor, eras uma analista da estupidez e uma egoísta porque não partilhavas a tua capacidade intelectual, talvez por medo do olhar atento dos outros.
 Movias-te pelos pensamentos que escondias com risos despropositados, não querias chamar a atenção de ninguém.
Foste um acidente perfeito, fora a psoríase.
Eras capaz de produzir mudanças em ti sem seres motivada pela ganância prática do dia a dia.

A noite estava quase a chegar, ‘vou até o tanque’, aclaravas as sombras na ponta de um cigarro.
Sabes que ninguém se importa que fumes, mesmo tendo 15 anos.
O teu pai morreu tinhas 2, ainda te lembras do seu colo, talvez seja uma fantasia tua, mas quando pensas nele, vês um homem sensato e culto, alto e bonito, apesar de pescador.
A tua mãe amigou-se com o melhor amigo dele logo depois. Um estranho que percorre a casa, que liberta um bafo a vinho, que te dá cigarros para gostares dele.
Está na hora da novela na 4, o bairro está sossegado. Vais fumar aquele cigarro do padrasto sozinha, sem partilhar a solidão com que o destino te brindou em trocas de uns neurónios e uma doença crónica de pele.

João

O João aos 17 acelera na vida para chegar primeiro.
Não sabe para onde vai, só precisa ficar sem fôlego para não pensar nisso;
Faltou-lhe a família desde cedo e por isso tinha armadura de aço, como se fosse um super herói.
Sorria durante todo o dia e só se aborrecia durante a noite, tinha insónias e náuseas que o aço não podia explicar.
Dizia que aceitava a ordem do mundo e encolhia os ombros com indiferença à má sorte.
Nunca lhe passou pela cabeça deixar de lutar. Aprendia depressa para agradar, assim incomodavam-no menos.
Sabia que tinha sangue fervente e não queria perder a liberdade que cedo conquistou.
Tinha poucos sonhos, cada vez que olhava para o céu via apenas um buraco escancarado de onde adivinhava saírem labaredas.
O João nunca perdeu o controlo, era grandioso e abrigava-se dos maus pensamentos.
Ia ser feliz, assim a acelerar muito, para não pensar.