A psoríase deu-te cabo da pele logo cedo.
Sonhavas ser um xuxu leite de colónia!
‘Sonhar com o melhor’ dizias, só assim vale a pena sonhar.
No Verão mantinhas as mangas compridas e as golas subidas.
‘Não tenho calor!’
Escondias as crostas para não terem pena de ti, para não te perguntarem ‘o
que é isso coitada?’.
Espalhavas urtigas e banha de porco na pele mas ela continuava inflamada,
receita que encontraste num blog brasileiro.
Às vezes esquecias de dar importância à pele que vestias, ‘sou mais que
isso’, pensavas amuada, mas no fundo sentias raiva por os outros acharem a tua
condição preocupante, 'asco'.
Queixavam-se que eras distraída, ‘tola’, mas o que fazias era meditar muito
na vida.
Pensavas com frequência no amor!
Principalmente no incondicional! ‘Será que existe?’
Observavas com atenção os outros, em concreto os teus primos, mais de vinte
rapazes e raparigas que pairavam ali na zona de Peniche, fértil em canzanas.
Permanecias sorridente mas distante daquele mundo aparentemente divertido.
Tinhas psoríase e os rapazes pensavam que se ‘pegava’.
Desculpavas a tua tristeza com o facto de terem todos planos especiais na
escola, porque eram especiais na sua estupidez.
Cedo percebeste que o amor incondicional nunca encontrava resposta, quem o
recebia não o queria, quem o tinha queria despachá-lo.
‘Seria eu capaz de o recusar? Talvez!’, consideravas tudo o que era simples
desinteressante, como a tua família e os vizinhos.
O querer sincero tem um bruto entranhado no coração. Concluíste isto ao
observar os cães e gatos vadios que circulavam junto ao bairro dos pescadores,
mostravam feridas expostas mas pareciam satisfeitos.
O querer invejoso quer contagiar, não procura lealdade, procura espelhar-se
onde pode.
‘Quem não recebe que baste em
pequeno, rouba mais tarde para si, absorve o outro numa paz aparente. Este
tomar como seu requer malícia, este querer habita em corpos com almas que são
um antro’.
Achavas que este querer era predominante, um puxar de lustro ao ego
inseguro.
O incondicional, o sincero e o invejoso, era o que havia por ali.
Nada de romance ou amor platónico, isso é para quem não pesca para comer de
domingo a domingo.
Tinhas uma arma poderosa, que herdaste dos antepassados Gregos, tinhas
pressentimentos - uma avaria inata na máquina do bom destino e da
felicidade.
Pressentias que nada tinhas com o amor, eras uma analista da estupidez e uma
egoísta porque não partilhavas a tua capacidade intelectual, talvez por medo do
olhar atento dos outros.
Movias-te pelos pensamentos que escondias com risos despropositados, não
querias chamar a atenção de ninguém.
Foste um acidente perfeito, fora a psoríase.
Eras capaz de produzir mudanças em ti sem seres motivada pela ganância
prática do dia a dia.
A noite estava quase a chegar, ‘vou até o tanque’, aclaravas as sombras na
ponta de um cigarro.
Sabes que ninguém se importa que fumes, mesmo tendo 15 anos.
O teu pai morreu tinhas 2, ainda te lembras do seu colo, talvez seja uma
fantasia tua, mas quando pensas nele, vês um homem sensato e culto, alto e
bonito, apesar de pescador.
A tua mãe amigou-se com o melhor amigo dele logo depois. Um estranho que
percorre a casa, que liberta um bafo a vinho, que te dá cigarros para gostares
dele.
Está na hora da novela na 4, o bairro está sossegado. Vais fumar aquele
cigarro do padrasto sozinha, sem partilhar a solidão com que o destino te
brindou em trocas de uns neurónios e uma doença crónica de pele.